Archive for the ‘Contos’ Category
Dança das águas
Vanessa Becker Bender Não se vê ninguém à beira. O único som vem do balanço do mar e do grasnar das gaivotas brancas, que movimentam o silêncio do inverno. Nublado, chove uma fraca garoa. Em cena o mar cinza reflete o espelho do céu. Maomé pesca perto das pedras grandes, quando se depara com uma moça, que dança em frente às ondas. Ela faz movimentos com o corpo, parecendo conversar com o mar. Jovem, pele bronzeada, cabelos lisos e castanhos, roupas leves em tons claros se movimentam ao toque do vento. De olhos fechados gira de um lado para o outro no ritmo das ondas. Há tatuagens em seu corpo. Uma delas, localizada nas costas diz: Livrai-nos de todo mal, Amém. O pescador fica intrigado com a situação. Não entende bem o que ela está fazendo. Parece em outra dimensão, como se ninguém pudesse vê-la. Seus braços entram em sintonia com o corpo, e os pés de calços na areia gelada parecem flutuar. É uma dança movida pelos pensamentos. E o que pensa? Maomé questiona-se perplexo, sem respostas. Seus olhos seguem os gestos suaves ...
O Encontro
Vera Costa Era de tardezinha. Estávamos no maior bate-papo, eu e umas amigas, num café quando a vi se aproximando e me olhando, diretamente. Parecia um sonho. Quando falou comigo, precisamos conversar, o som de sua voz derrubou-me na realidade, simultaneamente um arrepio gelado me subiu pela coluna. Parecia a personagem que criara para a oficina de contos do Cheuiche. Tentei separar a realidade da alucinação. Desculpa, mas não te conheço. Retornou, sou eu mesma, vamos conversar? Tremendo me levantei, tentava raciocinar e organizar o caos. Pedi licença para as amigas, que também não estavam entendendo nada. Perguntaram-me se estava tudo bem, se precisava de ajuda. Precisava, mas disse que não. Convidei Rita para irmos a outro local. Não queria testemunhas, não sabia o desenrolar da história. Ela acenou com a cabeça, me despedi e saímos. Fomos para um barzinho próximo. Sentamo-nos de frente uma para a outra. Soltei-me na cadeira e busquei me recompor, psiquicamente, para explicar o inexplicável e compreender o que estava acontecendo. Ela parecia aborrecida. Perguntei, tomas alguma coisa? Para nosso primeiro encontro quero uma cerveja, ok, copo para as duas, por favor. Não ...
Meu personagem encontra um livro na rua
Paula Simon Tarde morna de outono, o sol tocando as folhas das árvores deixa-as ainda mais verdes e bonitas. O Parque da Redenção é um local no qual Maria realmente gosta muito de passear. Desde que há muitos anos veio para esta cidade encantou-se com o grande parque que foi ao longo dos anos mudando de fisionomia. Ela preferia quando era mais aberto e com menos gente circulando, tantas pessoas caminhando para todos os lados passa-lhe a impressão de formigueiro. Apesar disto é um de seus locais preferidos para caminhar, tomar sol e segundo ela mesmo diz, para sentir-se viva. Nos sábados frequenta a feira ecológica e gosta de ir passear no Brique aos domingos. As filhas ou netas a levam, pois é um dos momentos mais esperados por ela durante toda a semana. Ela vibra com tudo o que vê, seus olhos muito vivos percorrem tudo e todos percebendo os mínimos detalhes, desde as flores que desabrocham nos jardins até os objetos antigos que estão à venda nos espaços dos antiquários. Estes objetos lhe trazem lembranças de sua juventude... As xícaras de porcelana, as bandejas de prata, ou ...
Branca de Neve
Nurah Said Said Youssef ainda dispunha de uma semana de férias e queria aproveitá-la ao máximo com a família. Havia chegado há poucos dias do Egito e a rotina de casa estava o inserido novamente no seu pequeno e já conhecido mundo, onde a segurança reinava no café quente tomado na caneca do papai ou num filme no final do dia. A rotina o trazia de volta do mundo surreal dos nômades do deserto. Aliás, por um tempo, ele queria esquecer um pouco o turbilhão que havia passado por lá, vivenciando de perto uma tempestade do deserto. Uma noite, lendo a história de Branca de Neve à filha, chegou na parte em que a rainha manda o caçador matar a protagonista da história, para se tornar a mais bela de todo o reinado. Com a inocência característica de qualquer criança com quatro anos, Ãmar interrompeu o pai, quase em pânico: Mas por que ela quer matar a Branca de Neve, papai? Pra ela ser a mais bela de todo o reinado, minha filha. Respondeu Youssef sem dar a devida atenção ao choque que se instalou ...
Deja-Vu
MARIZA NONOHAY - As estranhas emoções que nos assomam ao entrarmos em algum local, sentirmos determinados perfumes ou vivenciarmos situações, não podem estar circunscritos a curta memória material desta vida, diz Tarif ao seu acompanhante em tom conclusivo. Está frente a uma pintura representando beduínos em uma tempestade de areia, datada de 1798 que o fizera sentir profunda nostalgia. -O Louvre é a história de grande parte do mundo, pintada. Se soubermos ler as obras de arte, elas nos contarão quando aconteceram, pois cada idade tem a sua arte e a sua literatura, de conformidade com a necessidade da época, comenta Tarif, enquanto senta num banco do vão central do Museu do Louvre,na companhia do amigo Aghar. Era Janeiro e Maria Cirandella, apesar do frio, aproveitava as férias para embeber-se em arte. Sentada no mesmo vão, próxima de Tarif, consegue entender o espanhol arrastado que ele utilizara e pensa que não é a única a sentir esta sensação. Paris, por exemplo. Antes de conhecê-lo, sentia uma saudade nostálgica e, desde ...
Uma História
Mara Cidade Uma história diferente. Começa do nada como se alguém se visse num deserto. Talvez até com um oásis, quem sabe, mas sem rumo, sem horizontes. O calor escaldante queimando a pele, tempestade de areia impedindo a visão. A noite chegando e o frio amenizando a atmosfera pesada do dia. É a história da vida. Somos colocados neste mundo sem saber o porquê. O começo. O nascimento é lindo, encantamento, amor. Perspectivas começam a serem criadas. São fantasias apenas que somos obrigados a realizar senão ficaremos à margem. É uma luta contínua, é um caminhar errante. As dores tomando a dianteira e as alegrias ocasionais disfarçando os implacáveis infortúnios. A realidade desta vida é muito dura e nós, os incautos, iludidos esperando, ansiosos, que a noite chegue. Aquelas dos desertos, para aplacar ...
A Culpa
Leonel Ohlweiler Na noite fria de domingo, ele está na sala, no fundo do corredor e sentado na poltrona. A resposta soa estridente no coração de Hermínio, mesmo que por telefone. Clara Bela cansou de promessas não cumpridas durante os anos de casamento e outros clichês que ele utilizou ao longo dos anos, além das desculpas esfarrapadas: -Hoje vou trabalhar até mais tarde! Querida, nem imagina, o pneu do carro furou, vou demorar! Estou aqui na Goethe, chove muito. Tudo alagado. Vou dormir na casa do Zé, está bem! As mentiras acompanharam a trajetória do relacionamento conturbado. Um beijo desesperado e um passeio de Catamarã não apagam tantas lembranças ruins... Não credita no que vê, mas está lá, com aquele olhar acusador. Repete os mesmos gestos, por vingança ou despeito. Ele é o seu maior desafio. Segura o copo e ele também. Mexe o cabelo e ele também. Joga longe o Livro dos Amores Perdidos, e ele também. Por alguns segundos ambos permanecem paralisados. Apenas olha impassível para o fundo dos olhos de Hermínio e diz: -Sim o ...
A polêmica em torno das girafas
Denise Bueno Januário escuta o noticiário. Uma polêmica lhe chama a atenção. As girafas do zoológico morreram. O governo do Estado programou a compra dos novos animais. Um grupo posiciona-se contra esta forma de aprisionamento. O pensamento de Januário dialoga com sua história de vida, lembra de sua filha caçula. Recorda daquele domingo de sol. Passeio programado. A família dirige-se ao Jardim Zoológico. A vemaguete carregada com as iguarias de Julia. Vera e Renato brigando com a pequena Denise para saber os premiados com o lugar na janela. Julia argumenta que saíram muito cedo de casa, ao que Januário responde com uma frase de seu pai: - Cavalo que chega cedo bebe água limpa. No Zoológico, Renato e Vera brincam na praça enquanto Julia estende uma toalha para o piquenique. A pequena Denise segue de mãos dadas com o pai observando cada animal. Com cinco anos descobre bichos que até então só sabia da existência nas estórias contadas pelo pai. Gosta da onça que acha parecida com o gato da tia Helga. Assusta-se com o hipopótamo, tem medo, pede colo. Ao chegarem ao local destinado às girafas, Denise hipnotizada com ...
O Preço da Liberdade
Carmen Macedo Samuca acordou cedo. Abriu o jornal na página predileta. Variedades, notícias curtas. Espantou-se ao ver a primeira: “Zoo sem girafas”. Era muito mal redigida. Tosca. Aquela frase, imensa, ocupava todo o parágrafo. Repetições de palavras próximas, demonstravam falta de vocabulário. Imaginou Claudinha lendo a nota e escabelando-se. Não resistiu e ligou. Oi, meu amor, tudo bom? Oi, querido. Que surpresa, de manhã cedo. Mimosa, viste a notícia das girafas? Claro que vi, Samuca. Fiquei indignada. Pois é, querida, será que só colocam estagiários agora? E o Túlio? E o Marcelo, onde andam? Tinha certeza que ias ficar enojada. Mas... me diz uma coisa, Samuel: tu és contra ou a favor de importarem as girafas da África? Achas que os animais devem ficar libertos ou enjaulados para serem vistos pelas pessoas? Não sei, princesa. Ainda não pensei no assunto. Pois então, pensa. Já está na hora de teres opinião formada. Amanhã vamos nos ver e conversaremos a respeito. Depois da ligação, Samuca sentiu que havia caído numa cilada. Armada por si mesmo. Não devia ter mexido naquele vespeiro. Principalmente se ainda não possuía um juízo de valor sobre o tema. Mais ...
As girafas
Silvia Cestarì Este ano, as duas últimas girafas se foram. No Jardim Zoológico de Sapucaia do Sul o espaço delas está vazio. Lembro de quando levava meus filhos ao Zôo, em diversos domingos, para terem contato com os animais selvagens vindos dos lugares mais longínquos da terra. Era leão, tigre, rinoceronte, hipopótamo, urso, macaco, ave, cobra, elefante, girafa, leopardo, jacaré. Bichos que se não estivessem no Zoo jamais colocaríamos nossos olhos neles. Sentimos seus cheiros e ouvimos seus sons. Somente não podemos tocá-los porque são perigosos. Passear pelos caminhos de areão, árvores e grama, comendo pipoca e bebendo água em garrafinha era uma alegria só. Para quem morava em apartamento, um passeio no zoológico era energizante. Hoje uma polêmica está formada. É sobre o direito dos animais de ficarem em seus habitats naturais e de não mais viverem em cativeiro. Diante disto a compra de novas girafas para o nosso Zoo foi adiada, na espera de uma solução para este impasse. A experiência de vê-las ao vivo foi inestimável e permanece em nossa memória. Do jeito que as coisas estão se ...
Aprisionada
Lindoia Cusinato Ao ler a notícia no jornal percebeu como se sentia. Aprisionada. Também era um animal enjaulado, impedido de movimentar-se livremente. A nota da imprensa relatava a vida das duas girafas em companhia uma da outra. Ambas, remanescentes de um grupo que vivia no zoo de Sapucaia, conviveram por um largo período até a morte da mais velha, Fifi. Descrevia a mudança de humor da menor, Doroteia, e da perda gradual de sua saúde. E por fim sua morte. Morreu de saudade. Suas defesas combalidas não resistiram a uma pneumonia. Descrevia a falta de liberdade, aprisionadas em um ambiente restrito e artificial. Na juventude sonhara com o “príncipe encantado”. Como nos contos de fada, seriam felizes para sempre. No início, tudo foi perfeito. O príncipe adivinhava-lhe os pensamentos e satisfazia todos os seus desejos. Mais tarde veio a rotina e a insatisfação, os ressentimentos, a raiva e os conflitos. Percebeu que seu príncipe virara sapo. Sentia-se controlada, anulada, esmagada sob a pesada carga do amor. Sem liberdade para decidir o que quisesse. Não sabia o que fazer, mas uma coisa era certa, precisava salvar-se antes que fosse tarde. Por mais que pensasse, só tinha ...
Uma mancha de tinta nankin
Alcy Cheuiche - Nove horas, meninos, cama! Esta frase do meu pai ainda soa nítida nos meus ouvidos. Principalmente quando quero escrever no outro dia bem cedo e fico redemoinhando antes de deitar. Com oito horas de sono, sou capaz de trabalhar dezesseis sem cansar. Se dormir pouco, viro num coitado. E a frase dele volta da infância para me ajudar. Acostumado a deitar e acordar cedo (para ir ao colégio) lembro de uma vez que tive de fazer serão, como se dizia. Eu estava com doze anos de idade, cursava o primeiro ano do ginásio do Instituto de Educação Osvaldo Aranha, em Alegrete, e só gostava de duas matérias: história e geografia. Em português, só era bom para escrever redações (as tais de análises sintáticas e léxicas me deixavam doido). Em matemática era um fiasco. Em desenho geométrico, uma catástrofe. - Meu filho, tu tens que fazer este desenho antes de dormir. Minha mãe falava sempre com voz tranquila. Se estivesse zangada, não falava nada. Não gritava jamais, nem usava palavras grosseiras. Se eu abusasse da sua paciência, o que não era raro, ela custava a dizer a frase irremediável: - Eu ...