Uma mancha de tinta nankin

agosto 29, 2011  |   Contos   |     |   Comentários desativados em Uma mancha de tinta nankin

Alcy Cheuiche

– Nove horas, meninos, cama!

Esta frase do meu pai ainda soa nítida nos meus ouvidos. Principalmente quando quero escrever no outro dia bem cedo e fico redemoinhando antes de deitar. Com oito horas de sono, sou capaz de trabalhar dezesseis sem cansar. Se dormir pouco, viro num coitado. E a frase dele volta da infância para me ajudar.

Acostumado a deitar e acordar cedo (para ir ao colégio) lembro de uma vez que tive de fazer serão, como se dizia. Eu estava com doze anos de idade, cursava o primeiro ano do ginásio do Instituto de Educação Osvaldo Aranha, em Alegrete, e só gostava de duas matérias: história e geografia. Em português, só era bom para escrever redações (as tais de análises sintáticas e léxicas me deixavam doido). Em matemática era um fiasco. Em desenho geométrico, uma catástrofe.

– Meu filho, tu tens que fazer este desenho antes de dormir.

Minha mãe falava sempre com voz tranquila. Se estivesse zangada, não falava nada. Não gritava jamais, nem usava palavras grosseiras. Se eu abusasse da sua paciência, o que não era raro, ela custava a dizer a frase irremediável:

– Eu vou contar para o teu pai.

E aí era certo que eu iria apanhar. E com razão, quase sempre. Leitor assíduo dos livros de Edgar Rice Burroughs, uma das minhas diversões prediletas era brincar de Tarzan. Como a única árvore grande do nosso pátio era uma pereira, eu imitava também o homem-macaco subindo no telhado da casa e caminhando sobre as telhas. Dali a vista era linda e minha imaginação povoava os campos próximos de elefantes, antílopes, búfalos e leões. Não caí nunca lá de cima, mas raramente deixei de quebrar alguma telha, daquelas arredondadas, modeladas artesanalmente nas pernas dos portugueses, que diziam que eram feitas nas coxas. Na primeira chuva, surgiam as goteiras, parece que ouço o ruído dos pingos em bacias e panelas. E a frase condenatória era proferida calmamente, sem raiva:

– Eu vou contar para o teu pai.

Ele voltava do quartel somente ao entardecer, montado no seu cavalo Favorito e seguido pelo soldado ordenança, encarregado de levar de volta os animais para as suas baias e voltar com eles antes de clarear o dia seguinte. Assim, geralmente eu tinha tempo para me preparar para a tunda, colocando a minha calça de apanhar. Era uma calça curta, como todas as outras que a gente usava em pequeno, com exceção do uniforme ginasial. A calça comprida desse uniforme era a maior conquista para os meninos, mas, antes, tínhamos que passar no exame de admissão, uma prova obrigatória em todo o Brasil para as crianças serem recebidas no curso secundário.

Bueno, mas eu falava da calça de apanhar e explico porque ela ganhou, só dentro da minha cabeça, esse apelido. Era uma calça de lã muito grossa que protegia o local predileto onde meu pai batia com o talabarte: a minha bunda. O talabarte era uma faixa de couro de atravessar no peito, que caíra em desuso no uniforme militar e ficava guardada em cima do armário do quarto. Muitas vezes tive vontade de dar sumiço nele, mas o meu vizinho Chico apanhava com vara de marmelo e dizia que era muito pior.

Quando meu pai batia com o talabarte na minha bunda superprotegida pelo tecido grosso, eu quase não sentia nada, mas chorava e dizia bem alto, hipocritamente:

– Para, para! Eu não faço mais! Eu não faço mais!

É claro que algum relhaço podia pegar nas minhas pernas nuas e doer de verdade, mas isso era raro. Meu pai parava logo de me surrar, mandava chamar um pedreiro para trocar as telhas quebradas e, depois de alguns dias, eu subia de novo no telhado para brincar de Tarzan. Teimosia? Também era. Mas não esqueçam que as crianças do meu tempo só iam ao cinema nos domingos, que não havia televisão, nem computadores. Além dos poucos filmes, só os circos, a escola e os livros nos abriam janelas para o mundo.

Mas voltemos àquela noite em que minha mãe falou com voz bem mansa:

– Meu filho, tu tens que fazer este desenho antes de dormir.

Fazer não era bem o verbo certo. O desenho já estava feito a lápis sobre uma grande folha de papel vegetal. Representava um prédio enorme, de três andares, com muitas portas e janelas, um horror. A tarefa, que valia nota como uma prova mensal, era terrível para mim. Teria que passar tinta nankin sobre cada linha daquele desenho, usando a régua como apoio, mas sem borrar nada. Eram dez horas da noite, meu pai, minhas irmãs e o maninho Luiz Antônio já dormiam desde as nove, e eu tinha tarefa para mais duas horas, pelo menos.

Meus olhos ardiam de sono, mas era preciso mantê-los bem abertos. O menor erro e o desenho estaria prejudicado. Assim, trabalhei até a meia-noite para cobrir todas as linhas daquele maldito prédio, molhando um pincel de ponta minúscula na tinta preta do vidrinho. E pasmem os que conhecem a minha falta de habilidade manual: não cometi o menor erro, nem uma manchinha, a nota máxima estava garantida.

Bem, um único erro eu cometi. Ergui-me feliz demais e esqueci de fechar a tampa do vidrinho. Ele caiu para o lado e derramou-se todo sobre o desenho.

Eu estava com tanto sono, que engoli a vontade de chorar. Mostrei a catástrofe para a minha mãe e, com os lábios trêmulos, murmurei apenas:

– Vou tirar zero.

E fui me deitar pensando em achar aquele prédio, onde existisse de verdade, e quebrar todas as telhas junto com um bando louco de macacos. Enquanto isso, minha mãe me acompanhou até o quarto, ajeitou o cobertor por cima de mim e apagou a luz.

No outro dia, bem cedo, a Lília, minha irmã, que também estava cursando o ginásio, dois anos na minha frente, foi quem me acordou para a aula. Engraçado, minha mãe devia ter pegado no sono, o que era raro. Resolvi ir até o quarto dela, preocupado que estivesse doente. No caminho, passei pela sala e vi a folha do desenho aberta sobre a mesa, no mesmo lugar onde a havia deixado. Só que ocorrera um milagre. A enorme mancha de tinta nankin tinha desaparecido.

Milagre de mãe. Não sei como, ela conseguira uma nova cópia do desenho, talvez indo à meia-noite na casa da professora, e fizera a tarefa por mim, durante a madrugada. Naquela folha estava o mais lindo poema que recebi na minha vida. Um poema sem nenhuma palavra. Mas um verdadeiro poema de amor.

Hoje, neste ano de 2011, aqui diante do túmulo dela, em Alegrete, leio as palavras que minha irmã Laís mandou colocar em nome dos quatro filhos de Zilah Maria Tavares Cheuiche: Mãe, paciência, amor e bondade.

E acho que todos vão pensar, por ser o escritor da família, que a frase é minha. Que bom que pensem assim. Eu, que amo tanto as palavras, não escreveria nada melhor.

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