O Preço da Liberdade
Samuca acordou cedo. Abriu o jornal na página predileta. Variedades, notícias curtas. Espantou-se ao ver a primeira: “Zoo sem girafas”. Era muito mal redigida. Tosca. Aquela frase, imensa, ocupava todo o parágrafo. Repetições de palavras próximas, demonstravam falta de vocabulário. Imaginou Claudinha lendo a nota e escabelando-se. Não resistiu e ligou. Oi, meu amor, tudo bom? Oi, querido. Que surpresa, de manhã cedo. Mimosa, viste a notícia das girafas? Claro que vi, Samuca. Fiquei indignada. Pois é, querida, será que só colocam estagiários agora? E o Túlio? E o Marcelo, onde andam? Tinha certeza que ias ficar enojada. Mas… me diz uma coisa, Samuel: tu és contra ou a favor de importarem as girafas da África? Achas que os animais devem ficar libertos ou enjaulados para serem vistos pelas pessoas? Não sei, princesa. Ainda não pensei no assunto. Pois então, pensa. Já está na hora de teres opinião formada. Amanhã vamos nos ver e conversaremos a respeito.
Depois da ligação, Samuca sentiu que havia caído numa cilada. Armada por si mesmo. Não devia ter mexido naquele vespeiro. Principalmente se ainda não possuía um juízo de valor sobre o tema. Mais do que uma questão de estilo, era uma questão filosófica. Claudinha tinha os neurônios afiados. Precisava refletir para não parecer idiota. Difícil chegar a uma conclusão. A matéria era complexa. Se em cativeiro os animais estavam cuidados e recebiam alimento, por outro lado, abriam mão do bem maior, a liberdade. Não padeciam maus tratos, mas eram escravos.
Em todos os lugares do mundo existiam zoológicos e isso era encarado com normalidade, gerações após gerações. Por que agora, tudo ia mudar de repente? Só nós, em nossa cidade, por causa de um bando de fanáticos, íamos virar o batalhão do passo certo? E os animais dos circos, por acaso não estavam enjaulados? Então esses também teriam que ser soltos? Ou os circos acabariam sendo proibidos no país?
Passou do presente ao futuro. Haveria chance de extinção se os animais selvagens continuassem presos? Imaginava que o número dos cativos fosse irrelevante. Provavelmente não haveria diferença. Em todo caso, não era justo retirá-los de seu habitat natural pelo simples deleite de vê-los expostos. Escravizá-los, em poucos metros quadrados, sem dar-lhes a chance de escolha. Totalmente errado. Mas e seus netos? Só iriam conhecer os bichos por fotos, filmes ou pela internet? Também não gostava da ideia. A cabeça de Samuca fervilhava de perguntas com múltipla escolha. O tempo passava e a prova ainda estava em branco. Tinha que tomar decisões ou ia rodar na cadeira Liberdade para os Animais. Professora Cláudia, sentada no púlpito, encarava-o, olhava o relógio e cronometrava o tempo. Tic-tac-tic-tac-tic-tac.
Era definitivamente contra caçadas e matanças. Imediatamente, o cheiro de sangue inundou sua mente. Abominava a retirada de peles para uso em roupas e calçados. Terrível, pura selvageria.
Samuca estava confuso. Estômago embrulhado. Sentia-se preso e amarrado a uma teia invisível. Não queria se encontrar com Claudinha.
Aos poucos, começou a deslindar o nó. Tudo uma questão de liberdade. Afinal, somos todos animais, racionais ou não. Em sua vida, era o mesmo dilema. Sair do cativeiro. Abandonar a zona de conforto. Abrir mão da inércia do repouso, sabendo-se prisioneiro do tédio, mas podendo ser, dia a dia, alimentado, cuidado, sem mudanças num script conhecido. Dentro de uma jaula imutável, que se pode caminhar, de um lado para outro e, eternamente, se sabe aonde vai chegar.
Afinal, sair em busca da liberdade podia doer muito. Era para os que ousavam. Samuca sempre soube que, se saísse, não haveria cláusula de arrependimento. Teria que ser em definitivo.
E sabe também que muitos animais, depois de acostumados a um longo período de cativeiro, não se habituam novamente quando voltam à natureza. Não sabem sobreviver sozinhos. Porque não conseguem suportar a liberdade. Perecem.
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