A Culpa
Na noite fria de domingo, ele está na sala, no fundo do corredor e sentado na poltrona. A resposta soa estridente no coração de Hermínio, mesmo que por telefone.
Clara Bela cansou de promessas não cumpridas durante os anos de casamento e outros clichês que ele utilizou ao longo dos anos, além das desculpas esfarrapadas:
-Hoje vou trabalhar até mais tarde! Querida, nem imagina, o pneu do carro furou, vou demorar! Estou aqui na Goethe, chove muito. Tudo alagado. Vou dormir na casa do Zé, está bem!
As mentiras acompanharam a trajetória do relacionamento conturbado.
Um beijo desesperado e um passeio de Catamarã não apagam tantas lembranças ruins…
Não credita no que vê, mas está lá, com aquele olhar acusador. Repete os mesmos gestos, por vingança ou despeito. Ele é o seu maior desafio.
Segura o copo e ele também. Mexe o cabelo e ele também. Joga longe o Livro dos Amores Perdidos, e ele também.
Por alguns segundos ambos permanecem paralisados. Apenas olha impassível para o fundo dos olhos de Hermínio e diz:
-Sim o que imaginavas? Depois de tudo ainda queria respostas agradáveis?
-Foi falta de consideração!
-Como você é ingênuo!
-Mas, depois de tudo que eu fiz, poxa…
-Convites para passear, beijinhos arrependidos! Você tem quem crescer. Quem é que veio hoje jantar aqui?
Olha para os lados e não responde.
-Ninguém, ela não veio e nem virá nunca. Aliás, a comida deve estar uma porcaria! Você nem sabe cozinhar direito, só pegou a receita na internet pra agradar. Em quinze anos de casamento quantas vezes fizestes um jantar?
Com os olhos marejados também permanece em silêncio.
-E não adianta fazer beicinho que vai chorar!
-Para, para com isto, vê se cresce! Olha, sinceridade, nem pro seu filho liga muito, só vê o menino na primavera, naquela fazenda lá do seu tio. Que desgraça!
-Mas é que…
-Pensa, pensa e não fica ai me olhando com a mesma cara de sempre!
-Porcaria!
-Você quer quebrar é, quer? Não adianta, a culpa está dentro de ti.
Com olhos de lamentação, fita o vinho rodopiando no cálice, sem parar.
-Agora, tem jeito. Tudo tem jeito, menos a morte.
-Então é isto, pronto.
-Não, não, não é o caso.
E tudo começa novamente. Pega o cálice, e ele também. Levanta e vai até a janela, ele também, mas olha de canto de olho.
É observador. Gosta de detalhes.
-Não adianta amanhã só cortar o cabelo e fazer a barba. São todas mentiras estéticas. Futilidades de autoajuda.
Murmura algo, balbuciando impropérios.
-O quê?
Senta na cadeira da sala, cansado, com o corpo doendo.
-Amanhã vai trabalhar sim. Não vais deixar aqueles adolescentes esperando as aulas de filosofia. Nem são tão boas assim, eu sei, mas tem que dar e pronto.
Permanece distante olhando para o fundo do cálice.
-Não estás entendendo nada pelo jeito. Assim como a culpa é interna, o amor também. Podes acreditar! É duro ouvir o que não gosta hein?
-Ah? Não escuto, não escuto!
Na sala,agora sentado com os olhos adormecidos, a garrafa de vinho rolava vazia sobre o tapete. Apenas ouvia-se o barulho estranho do relógio que andava para trás e o espelho inquietava o fundo do corredor.
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