A Culpa

outubro 22, 2012  |   Contos   |     |   0 Comment

Leonel Ohlweiler

Na noite fria de domingo, ele está na sala, no fundo do corredor e sentado na poltrona. A resposta soa estridente no coração de Hermínio, mesmo que por telefone.

Clara Bela cansou de promessas não cumpridas durante os anos de casamento e outros clichês que ele utilizou ao longo dos anos, além das desculpas esfarrapadas:

-Hoje vou trabalhar até mais tarde! Querida, nem imagina, o pneu do carro furou, vou demorar! Estou aqui na Goethe, chove muito. Tudo alagado. Vou dormir na casa do Zé, está bem!

As mentiras acompanharam a trajetória do relacionamento conturbado.

Um beijo desesperado e um passeio de Catamarã não apagam tantas lembranças ruins…

Não credita no que vê, mas está lá, com aquele olhar acusador. Repete os mesmos gestos, por vingança ou despeito. Ele é o seu maior desafio.

Segura o copo e ele também. Mexe o cabelo e ele também. Joga longe o Livro dos Amores Perdidos, e ele também.

Por alguns segundos ambos permanecem paralisados. Apenas olha impassível para o fundo dos olhos de Hermínio e diz:

-Sim o que imaginavas? Depois de tudo ainda queria respostas agradáveis?

-Foi falta de consideração!

-Como você é ingênuo!

-Mas, depois de tudo que eu fiz, poxa…

-Convites para passear, beijinhos arrependidos! Você tem quem crescer. Quem é que veio hoje jantar aqui?

Olha para os lados e não responde.

-Ninguém, ela não veio e nem virá nunca. Aliás, a comida deve estar uma porcaria! Você nem sabe cozinhar direito, só pegou a receita na internet pra agradar. Em quinze anos de casamento quantas vezes fizestes um jantar?

Com os olhos marejados também permanece em silêncio.

-E não adianta fazer beicinho que vai chorar!

-Para, para com isto, vê se cresce! Olha, sinceridade, nem pro seu filho liga muito, só vê o menino na primavera, naquela fazenda lá do seu tio. Que desgraça!

-Mas é que…

-Pensa, pensa e não fica ai me olhando com a mesma cara de sempre!

-Porcaria!

-Você quer quebrar é, quer? Não adianta, a culpa está dentro de ti.

Com olhos de lamentação, fita o vinho rodopiando no cálice, sem parar.

-Agora, tem jeito. Tudo tem jeito, menos a morte.

-Então é isto, pronto.

-Não, não, não é o caso.

E tudo começa novamente. Pega o cálice, e ele também. Levanta e vai até a janela, ele também, mas olha de canto de olho.

É observador. Gosta de detalhes.

-Não adianta amanhã só cortar o cabelo e fazer a barba. São todas mentiras estéticas. Futilidades de autoajuda.

Murmura algo, balbuciando impropérios.

-O quê?

Senta na cadeira da sala, cansado, com o corpo doendo.

-Amanhã vai trabalhar sim. Não vais deixar aqueles adolescentes esperando as aulas de filosofia. Nem são tão boas assim, eu sei, mas tem que dar e pronto.

Permanece distante olhando para o fundo do cálice.

-Não estás entendendo nada pelo jeito. Assim como a culpa é interna, o amor também. Podes acreditar! É duro ouvir o que não gosta hein?

-Ah? Não escuto, não escuto!

Na sala,agora sentado com os olhos adormecidos, a garrafa de vinho rolava vazia sobre o tapete. Apenas ouvia-se o barulho estranho do relógio que andava para trás e o espelho inquietava o fundo do corredor.

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