O Encontro

outubro 22, 2012  |   Contos   |     |   0 Comment

Vera Costa

Era de tardezinha. Estávamos no maior bate-papo, eu e umas amigas, num café quando a vi se aproximando e me olhando, diretamente. Parecia um sonho. Quando falou comigo, precisamos conversar, o som de sua voz derrubou-me na realidade, simultaneamente um arrepio gelado me subiu pela coluna. Parecia a personagem que criara para a oficina de contos do Cheuiche. Tentei separar a realidade da alucinação. Desculpa, mas não te conheço. Retornou, sou eu mesma, vamos conversar? Tremendo me levantei, tentava raciocinar e organizar o caos. Pedi licença para as amigas, que também não estavam entendendo nada. Perguntaram-me se estava tudo bem, se precisava de ajuda. Precisava, mas disse que não. Convidei Rita para irmos a outro local. Não queria testemunhas, não sabia o desenrolar da história. Ela acenou com a cabeça, me despedi e saímos. Fomos para um barzinho próximo.

Sentamo-nos de frente uma para a outra. Soltei-me na cadeira e busquei me recompor, psiquicamente, para explicar o inexplicável e compreender o que estava acontecendo. Ela parecia aborrecida. Perguntei, tomas alguma coisa? Para nosso primeiro encontro quero uma cerveja, ok, copo para as duas, por favor. Não tomei nada, precisava de todos os neurônios espertos. Ela tomou largos goles, parecia buscar palavras, então explodiu:

– Se me inventou, podia, pelo menos, dar-me uma vida interessante. Fez-me uma interiorana, ingênua, bobinha, pobre, sem graça e ainda por cima comerciária com ambição de ser artista.

-Eu sinto muito, mas nunca escrevi antes, nunca pensei em ser escritora, queria apenas me expressar melhor. Tu és a minha primeira personagem. É apenas uma experiência …

– Que falta de sensibilidade. Pensas realmente que é apenas uma experiência? Não percebes que a coisa vai muito além disto? Mas voltando, as histórias que escreves são pequenininhas. Não há só pobreza material, também a imaginação é escassa. Que coisa mais sonsa ser salvadora de menino gay, virar loura e se arrepender ou se lembrar de vizinha contadora de histórias. E depois me colocas em cada fria…

– Mas contos são histórias curtas. E para uma personagem tu és bem impertinente, não? E em que fria te coloquei?

– Sem graça. Eu tenho o teu DNA, esqueceste? Sou uma dos milhares que te habitam. O que estás vendo és tu mesma. A fria é me fazer colocar merda em carro de militar, ser distraída a ponto de comer chocolate dos outros e entrar em casa assombrada. Eu fiquei com muito medo por um bom tempo, sabia?

– Mesmo? Milhares… Que loucura… Mas o caso da ditadura foi sem pensar, me ocorreu. Quanto a casa assombrada, estava experimentando o suspense, pelo jeito funcionou. E também tenho que tentar a comédia. Mas me responde uma coisa. Como é que você está aqui? Eu te imaginei. Como pode se materializar?

– É que tem coisa muito mais interessante na história do nosso país e o mundo é vasto. Mas principiante ou não, não percebeste de que o ser humano ao criar dá vida às coisas? Uma vez que tu me inventaste, eu vivo. Lembras de me encontrares nos teus sonhos? Diurnos e noturnos? Eu tentei me comunicar, mas foi tudo em vão. Fizeste ouvido moco, por isto estou aqui.

– Não, não sabia. Que interessante. Daria um belo conto…

– Na vida tudo é interessante, mas é preciso saber escrever. Precisa dar profundidade aos personagens. Nos relatos mostra-me superficial, sou mais do que aquilo que narras. Seria bom começar a pesquisar. Pensou que escrever era passatempo? Sinto te informar, mas é trabalho e dos pesados.

– Estou percebendo. São os meus primeiros contos. Espero, sinceramente, com o tempo, melhorar. Depois de escrever muito mais, adquirir um estilo, algo que mereça ser lido, com mais consistência o que valorizará os personagens.

– Sim, eu acho que precisas te esforçar. A minha história depende de ti. Tu já tens bastante vivência, agora terá de descrevê-la, colocá-la no papel. O teu esforço será recompensado. E os teus personagens podem te ajudar. Tente me escutar quando eu sussurro na tua orelha. Dê-me ouvido. Lembre-se, eu existo. Não é apenas uma experiência, é vida.

– E como eu faço para te escutar?

– Te escutando. Se te falta inspiração leia bons autores, bons livros. Veja como seus personagens tem vida própria, tem alma. Outra coisa: não fuja da vida. Viva para me deixar viver. Entendeste?

– Acho que sim. Prometo que vou me esforçar. E obrigada pelas dicas.

– Gostei de falar contigo. És como eu imaginava. Era isto. Vou indo, tchau. Sorriu pela primeira vez.

Ainda perplexa, respondi tchau. Ela se foi e eu pedi outra cerveja. Precisava.

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